quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Escrevo a poesia que ninguém lerá

Ao longe a música chia
no antigo gramofone do dia
quente deste final de novembro
apagando o trinar dos passáros
que os céus levam até o mar
debruado com as velas ao vento
dos barcos executando os acordes
das canções de alguma infância

Gaivotas voam acima dos meus medos,
acima das canções inacabadas,
da angústia inútil de não esquecer
e da poesia escrita na bruma da manhã
estampada na primeira hora
atada ao dia que veio com o vento
na primeira flor
na primeira dor

Escrevo a poesia que ninguém lerá
Escrevo para as sombras
da minha infância
Escrevo porque sinto
e porque a palavra me liberta
E é esta é a minha culpa maior:
dizer o que não fui,
falar do inapto que ainda sou
Só o que sinto
e o que minto
de mim para mim
é o que fica de mim na aléia
por onde caminha o Mistério
na poeira quente das estradas
sem encontros,
nem companhia

Ando a olhar para o céu
buscando no trilar das aves,
os pássaros origami
que me habitam
e me trazem, assim,
este amor impossível
pela coisas instadas,
pelas estrelas
e seus poemas,
que não se extinguem
e movem-se sem cessar
ao nosso encontro?

No velho espelho contemplo
a chama da infância
Tuas mãos pequeninas
aquecidas ao sol
de um inverno ofuscando,
os teus olhos negros,
teu corpo recendendo
à paixão e à ternura

Da janela do quarto
ainda vejo dormir a noite
Vejo dormitar o passado
sob a luz de candeia
de uma lua iluminando a alma,
sem, no entanto, separar
a solidão destes versos
que me sopram

Os pássaros regressam de muito longe
atravessam a noite,
inocentes,
desfazendo o silêncio
com o branco das suas asas
Procuro no escuro,
tateio suas silhuetas esguias,
da onde virão?
Trarão um ramo no bico?
Os pés molhados de mar?

Em meio as estrelas adormecidas
a lua irrompe pela janela dos sonhos
Encosto a mão na face molhada do sono,
digo um segredo,
calo um grito,
sussurro o desejo de partir,
sentindo a areia fria das dunas
como se a areia houvesse sido o meu mundo,
só e esbatido pelas gotas de sereno
que serão o orvalho da manhã sem nome
e que não demora a chegar na praça
acordando os pombos e os seus arrulhos
balançando as matas ao rumor do dia
lançando as primeiras gotas no mar
resplandecendo nos rochedos
caminhando para o verão
perfumado de primaveras,
refletindo luzes de outonos,
sob um céu nacarado de inverno

As nuvens passam singrando os céus,
barcos de algodão,
rendas no jardim onde brotam
os versos que podem dizer às almas
o ouro da liberdade latente no átomo
imarcescível de cada novo dia,
abstrato como o papiro
a escorrer as palavras do que seria
um poema
ou a chuva caindo
                  errante
                  e terna

Nenhum comentário:

Postar um comentário