sábado, 29 de dezembro de 2012

Canteiros

Minha casa não tinha jardim,
mas tinha um canteiro de flores,
colado ao muro,
onde a chuva que caia do telhado no quintal
respingava nas plantas o gosto imanente das águas
No canteiro havia
rosas rubras feito um soneto a um amor antigo
cravos brancos e as rimas rugosas
das suas pétalas
pequeninos pés de maria-sem-vergonha
multicores, pintadas pela luz macia das estações
margaridas de um amarelo pra vida inteira,
antúrios e suas flores fálicas
Tinha outras flores que ficaram pelo tempo
Outros tempos que ficaram neste rosto
que busca o passado do outro lado do espelho
Nas lembranças, visitantes noturnas,
que me dizem coisas da infância
Nesta mão trêmula de agora,
Nestes olhos que quando olham olham  o mar
e as praias ao crepúsculo tecendo cores túrgidas de sol e sal
e os passos na areia fofa que vão ficando como um sinete
do silêncio que me leva ao mar 
e o ser fechado para a poesia
que tateando na escuridão ignota
faz das palavras
pássaros sem asas

Do canteiro e sua floração saiu a primeira flor
para a primeira namorada,
Enquanto entregava a flor,
a meninada na rua,
devagar, soprava
diáfanas bolas de sabão,
translucidas,
que o vento levava
até onde os anjos brincavam
com as crianças,
soprando-as,
com suas bocas sonhadoras
no ar azul da tarde bordada de sol,
perpassada de sonhos e de faz de conta,
onde brilhavam pequeninas gotas de chuva,
ornando a verde folha,
escorrendo pela pétala
reordenando, suavemente, a beleza da natureza

Nas noites sem lua a negra cortina escondia o canteiro
Noite sem estrelas,
só mantos de nuvens
onde a meninada construía os seus sonhos
e os seus medos e o medo do medo alheio,
noites imensas na escuridão,
longe da primavera
soprando a brisa vinda de um mar intangível
ondulando os lírios brancos
e as rosas em suas longas hastes
dentro de uma noite antiga a despedir-se 

É preciso lançar os barcos aos mares
como as folhas que caem na correnteza dos rios,
e são levadas pela pureza dos anjos
É preciso o escuro da noite,
sem lua,
sem estrelas,
para ouvir as antigas vozes,
a primeira lágrima
de um antigo amor,
de uma nova saudade

É essencial cultivar os canteiros
e as palavras
que podem ser flores,
mares,
amores,
poesia,
pequenos gestos de amor
dentro de um amor imensurável
o azul e a sombra do azul,
o sonho que
dorme náufrago e anônimo na minha existência

É essencial cultivar os canteiros
e o inaudito murmúrio dos ventos.
o belo,
o encanto,
o indescritível
É essencial resgatar
a inefável alegria da infância

As manhãs, sejam azuis ou cinzas ou douradas,
caminham sem tempo que as tolham,
sem ruídos de agoras
trazem o canteiro da infância
e as flores vicejam
por entre as emoções que irrompem
somente no absoluto da poesia
inexprimível
como os ventos imponderáveis

No canteiro do meu quintal há flores no outono,
do outro lado do nevoeiro
por detrás de qualquer domingo
no qual se ouve ao longe uma flauta que toca
para nossos sonhos imaturos
sedentos de estesia
como o amor sedento de amor
como o poeta sedento de um verso
meigo e suave
como o beijo de um colibri
como o sorriso de um palhaço
como o amanhecer que floresce nos quintais
das infâncias imperecíveis
e onde começa a infinda poesia

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