sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Vida

na memória dos poemas
na ponta dos dedos
nos olhos fechados do sonho
nos espelhos escorrendo tinta
da dissolução das imagens
pernoitam ávidas aves de pedra
de inquietos cantos
pernoita o homem obscuro
com seus atos de miragem
com sua insaciável voragem
com sua voz turva
sua fome de chacal
sua poesia pecadora
dos versos clamando pela madrugada
nos olhos do mar tremeluzindo
soluçando enormemente
a dor esquecida nos traços tristes do retrato pungente
enfeiando um mundo que ainda não morreu
mais além
o jardim de brisa
rente às flores
inunda o céu de papel-arroz
com estrelas
com silêncios
com adivinhas para os poetas
escondidas nas nuvens de algodão
na luminosidade esplêndida
do dia
no fim estalado da escuridão
da noite
aberta como um verso
pingando, oscilante,
escorrendo pela mão
vertendo do fim dos meus dedos
meus medos
minha ilusão
meu rio
minha saudade de mim
e de ti
minhas bugigangas de infância
meio pirulito vermelho
sem o palito
a bola surrada e puída
o pião batatinha
com metro e meio de fieira
sete bolinhas de gude
uma pipa voadora
a estrada aberta até o fim da ladeira
uma gaitinha de boca
que eu não sabia tocar
mas que pra mim tinha o som e o gosto
de bocados mordidos de liberdade
de vento entrando pela janela
balançando meus sonhos
a minha alma acesa ao fogo
do exílio da solidão
os pés vermelhos de terra vermelha
que por ali era muita
as costas da mão pra limpar o nariz
meus olhos em roda do teu vestido
minhas mãos colhendo da vida
meu primeiro amor
que enchia meus dias de segredos
as noites de medo de ficar sem ela
isto é tudo que tenho
dentro deste quarto escuro
nesta voz dentro de mim
pra arrastar as noites
e os passarinhos
para esta brincadeira
de ser poeta
sentado nesta cadeira
pensando um zilhão de besteiras
sem sono pra acordar
uma saudade
de um tempo que eu não vivi
das pétalas sedosas que eu não toquei
do perfume que eu não senti
da tarde irisante depois da chuva
saudade bebida aos golinhos
oh, menina
me afastando de ti
quarenta anos depois
a quem possa interessar
ainda te amo
eu te amei a vida toda
só não tive como te contar
e nem um verso te dei
eu não sabia falar
eu não sabia escrever
eu não sabia estas coisas que aprendi
no tempo escorrendo mel destes quarenta anos
ô, meus olhos negros
como em nenhuma noite há
agora são as lembranças ao redor de mim
delineando os meus sonhos
num simulacro de vida
me apanho te amando
antes e depois destes quarenta anos

é madrugada
acordei no meio da madrugada
pra beber água
o pensamento uma tentação
sento ao computador
descalço os chinelos
a cidade é um corpo delicado e suave
me olhando pela janela
amo a barra do dia inscrita nesta quietude
um automóvel passa riscando o ar com seu som
ainda de sono
fragmentos de um sorriso
como é possível amar o dia
com a presença deste laço azul da noite?
com este esforço piedoso do Senhor
para suprir esta carência compassiva que me sorve aos borbotões
a vida engravida da gente
e faz defensável todo e qualquer argumento
a espera
dos teus olhos negros
o céu azul de cobalto
os remos imitando a busca por um caminho
a vida cresce nas minhas perguntas
as coisas são o que são
e a vida...?
a vida é esta coisa coruscante
a vida é este eterno cantochão

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