terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Minhas vidas fui eu que fiz

 
Há os que atiram para tão longe
Quanto os céus e os astros,
Ou mesmo para vidas passadas
A responsabilidade por seus infortúnios,
Por seu destino, por sua vida...
Numa atitude sem transformação, sem crescimento...
Melhor conduta é observar, atenta e radicalmente (pela
[raiz!),
A realidade da vida em si mesma...
Examinar a sociedade, aqueles que nos rodeiam...
Esta atitude revolucionária requer, sobretudo,
Um olhar mais que profundo
Para dentro de nós mesmos!
Mas é preciso coragem, toda coragem
Para abandonar as fantasias que tanto nos embriagam!
 
Enio Burgos
In O Semeador de Imagens, pag. 7, Editora Bodigaya, 2005.
 
 
 
As minhas vidas fui eu que fiz
com as minhas tantas ignorâncias,
com as ilusões que trago no gosto travo do vinho
bebido nas esquinas do ontem,
com a minha soberba:
fuga e medo,
voragem,
folha ao vento,
tolo,
sem rumo,
em letárgica suspensão,
em adiantado estado de degradação,
embriagado pelos prazeres, desejos, concupiscência
vi a vida entardecer sem sentido
vi as vidas morreram tantas vezes
e tantas vezes, em si mesmas, refletirem as velhas imagens do espelho
vi as madrugadas postas em espedaçadas ilusões
que o escuro engoliu
não posso alegar que não sabia, não sei
o que a  minha alma aspira
há flores nas veredas que a chuva matutina teceu
não consigo entrar no riacho sem  molhar os pés,
sem sentir o toque firme e macio dos gorgulhos
há tanto passado movendo o presente
há tanto segredo interpelando a solidão das épocas
há tantos mistérios nos silêncios das palavras que voz nenhuma dirá
há os dias que são a expressão das minhas escolhas
o destino dá à semente o que a semente é
o tempo corrompe o devir
e seca as flores da janela abandonada ante o desespero dos tantos pecados
os pássaros voam
carregando o crepúsculo para a poeira das águas
tudo voa, se assim escrevo com minha verdade e meu pranto
e repito no ar o gesto com a mão
mimo todos os sentidos
tudo ilusão
meus olhos estão cegos de tanta ilusão
perdi-me, matei-me, respirando o ópio dos desejos
perguntando o "aonde da realidade?"
e outra vez é janeiro e um vermelho esquecimento
encheu de figuras meu reino
e as noites gritavam sentenças
no escuro do quarto
deitadas comigo
há dentro de mim um mundo sem entendimento,
um sentimento a discorrer poemas, gotas da alma
de quando em quando abrem-se portais
e vultos vão às margens dos rios escolher palavras,
num quase silêncio,
somente um sussurro
sibilando dentro da solidão dos dias e das noites
e dos mundos por onde caminha a verdade
expressando a incoerência fria entre as palavras e os atos
É preciso coragem para deslindar a alma
É preciso coragem e o coração pegando fogo
para o gesto portentoso e inesgotável do inicio
É preciso a inteira emoção inteira para suplantar as fantasias
e o mundo insaciável dos desejos


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