domingo, 10 de janeiro de 2016

E assim vamos vivendo IV


e assim vamos vivendo
pisando a barranca vermelha
limite entre a terra e o rio
o pé na pedra e no limo
o pé no tempo escorregadio
esperando que amanhã seja o agora
esperando como quem ora
para o tempo imaginário
e inconstante que pastoreia os dias
e traz momentos e medos
rabisca e enche o ar de segredos
e a inconstância da vida para lhes decifrar
esperando a adaga da sorte a dilacerar a última reposta
em meio à cerração que adorna e engole
o contorno das manhãs singelas
os passos e as sombras dos passos
que andam sobre a solidão das luas
infiltrando-se incipiente pelas vielas

o pensamento a dizer-nos
mastigando o que somos
a voz balbuciada
e o grito tartamudeado
o ranger das portas e janelas
suavizado pelos ruídos
das noites que não dormem
e enchem de sons
lençóis e travesseiros
o soluço sufocando
aguardando o silêncio
(que não vem, nunca virá)
para se fazer ouvir
dentro do esboço das noites
dentro das noites a viver por nós
balanço de mar ondulando
num negro azul zonzo e a sós

a infinda luz do sol
percorre janelas melífluas
vaza de dentro de alabastros
alvorada aberta depois da noite compassada
e acalanto
a noite toda fez-se de um pranto
de olhos secos
e tanto, e tanto e tanto
e tanto sonho por viver
e por não viver
desencanto

a noite
o tempo
a distância olhando para a morte
a insustentável escuridão do dia
eu diria
que é tarde para uma lágrima
tão cedo para dizer alegria

a vida
toda a um canto
insonte, insone, insonhável
a vida vivida para a morte
tudo mais é imponderável

a vida é boa
a vida é boba
a vida é tola
a vida à toa
é boba
é boba
é boa

e assim vamos vivendo
entre a ausência e a lágrima
entre cantigas de infância
e os medos guardados no grito
inaudível
machucando dentro de nós

e assim vamos vivendo
entre o barco cansado e o porto
entre o fratricida e o morto
entre a fome e a colheita do trigo
entre o nada e as mãos abertas
num gesto de solidão ou de abrigo

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