sábado, 22 de novembro de 2014

Atentai para os olhos dos que choram sem saber


PARTO E PRANTO
 
Soube o que era chorar
quando Amélia,
no funeral do irmão,
em lágrimas se desabotoou.
 
Rosto desprotegido,
mãos em desmaio,
aquele pranto fazia inexistir
as tristezas todas do mundo.
 
Não era compaixão
o que no peito me doía.
 
Invejava nela a fraqueza,
a coragem desse desamparo.
 
Não invejes, meu filho, disse minha mãe
Chorar assim, só uma santa.
 
Aquelas lágrimas
eram para Deus: não havia chão para as receber.
 
No regresso a casa,
a minha mão estremeceu, indefesa,
sobre o ombro de Amélia.
 
E como era extenso o ombro de Amélia.
 
Meu trêmulo dedo
a lágrima enxugou.
 
Ela me olhou,
com modos de ausência.
 
A sua voz era uma brisa
no dizer da surpresa: chorei, eu?
 
A tristeza mais triste
é dos que nem sabem que choram.
 
Mia Couto.
In Tradutor de chuvas. Caminho SA, 2013.
 
 
 
 
Atentai para os olhos e a face dos que choram sem saber
Deixai as lágrimas se desdizerem em sonhos e mensagens
que a chuva miúda lhes recordava
e lhes desenhava, a lhes escorrer pelo rosto,
revelações e arabescos
e o gosto todo do sonho e da brisa que sopra à noite
e que a um canto o canto reviva
e enlace a solidão oculta nos olhos obliterados pelas lágrimas
que a vida é estes grãos de incertezas
estes poemas calungas,
é este sonho antigo e sem fim,
este instante onde a sapiência incognoscível se manifesta
e se esvai antes da semente cair na alma
e morre como a luz há de morrer num derradeiro poente,
esta dor cor de cereja,
escorrendo incontinenti por entre os dedos
sem que se atente minimamente para as perguntas
ou para o silêncio e a ternura engastados nas respostas
 
Lamentai, em silêncio os olhos e a face dos que choram sem saber
Deixai as lágrimas se desdizerem em silenciosos soluços
e que do soluço faça-se a brevidade do tempo ingente
posto que seus olhos se fecham
e vão por caminhos sempre tristes
conduzidos pelo medo e a dor maior que dói e aflige
para além do ignoto momento
em que suas lágrimas deixam o sal
nas costas das suas mãos entre suspiros e mentiras
e seus lábios, sem perderem o encanto,
tartamudeando a palavra que não sabe,
deixam em meu ombro
o adocicado do borrão do seu batom

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