terça-feira, 25 de novembro de 2014

Cinco anos


A PRIMEIRA VEZ DA IDADE
 
A vez
que tive mais idade
foi aos cinco anos.
 
Meu pai,
com solenidade que eu desconhecia,
perante seus superiores hierárquicos,
apontou e disse:
 
- Este é meu filho
 
E deu-me a mão
coroando-me rei.
 
Mia Couto.
In idades cidades divindades. Editorial Caminho, 2013.
 
 
 
Brincam os dias
dos meus cinco anos
respiram na rua de terra
caminham irisados pelos ventos do deserto
que se estendia em minha volta
fizesse o que fizesse
por mais águas que lhe desse
enchia-se mais de desertos
o meu deserto sem nome e sem amor
 
Choram os dias
dos meus cinco anos
de medo,
de angústia,
de dor
a pedra atirada
contra as paredes do mundo
as ranhuras da linha na mão
um pequeno punhado de barro
um graveto
para quem tem fome de sonho é pão
 
Correm os dias
dos meus cinco anos
tão bela é a bola e o mar
e o aroma do sol
empapa meu corpo
iludido e solitário
correm os dias,
estes enormes dromedários,
a manar estes momentos de ternura
 
Cinco anos...
a alma estilhaçada
a infância sorve a chuva na tarde tímida
que caminha para a noite a passos largos
nas bordas do mundo vai sangrando o ruído escuro
da violenta figura com o golpe irrompendo da mão
a tua figura se desfazendo como um grito reverberando
no vazio da tua inexaurível truculência
empilhar as dores
engolir o soluço
sufocar
nos meus olhos cinco anos de melancolia
e desamparo
na minha (des)ilusão,
sem rumo,
na neblina dos meus cinco anos,
no silêncio das noites longas e inquisidoras
onde a emoção preenchia todos os escuros
da noite esquecida do sono
na noite onde inventava outras vidas
eu só queria te amar

A garatuja do tempo gritava outro dia
chovia a chuvarada e a beleza das águas
fazia da manhã as praias da minha infância  
depois da chuva punha barquinhos de papel
rumo a um mundo que só havia dentro de mim
ouvia o som puro da água e dos torrões de terra
que a chuva deixava cair
junto com a minha solidão
invisível como a sede e a recordação da água

Cinco anos suplicando,
esperando a tua atenção e o teu afeto
eu era apenas um menino que cantava baixinho
e inventava histórias para dormir que só a noite escutava,
histórias de animaizinhos solitários e com medo
onde no final o amor se revelava e enchia a noite
e os animaizinhos da noite de aconchego
e o sono vinha como uma saudade
que ia se desfiando e doendo aos pouquinhos
eu era apenas um menino que ouvia segredos
que ondeavam na formosura das tardes
onde o vento flertava com os cravos no canteiro
e sonhava mistérios
nas noites onde as palavras tinham alma
e onde a alma dizia coisas
despedindo-se da madrugada
coisas que ouvidas em silêncio, terna e atentamente,
bem que podia ser poesia
 
Cinco anos...
nunca me destes a mão
a não ser para me fazer morrer com a outra
ou para o opróbio da benção sem nenhum amor,
sem admiração,
sem respeito
apenas espanto
medo
e humilhação
oscilando as fadigas da raiva e da dor
a alma sufocada e oprimida
soluçava na angústia de se expressar
doíam-me os ossos, a pele, a alma
mas o que mais me doía
era não poder te amar

 

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