segunda-feira, 3 de setembro de 2012

A noite sabe de mim

A noite sabe de mim
e me espera
mesmo quando eu a quero esquecer e me afasto
e busco, nos campos dourados pelo trigo, adormecer
a noite por mim espera
A noite vem... e perfumada pelos aromas suaves da primavera
me olha com olhos ternos
dando das bocas o beijo
E este gesto que assoma nas horas
que mascam o tempo entre a música da brisa nos lírios
e o cricrilar dos grilos,
absorto,
suave,
longínquo
este gesto espera sozinho a espuma de vasto mar
que nasce nos teus olhos
e brinca com os barcos brancos
no inverno da ilha
Os bosques,
silentes,
quietos,
desatam a nostalgia
das flores cálidas,
como o toque da tua mão,
como o afago
e o teu reflexo na água
A noite sabe de mim,
sabe da minha alma
e destes destinos solitários que se escondem
nas gotas de orvalho que acendem a luz do sol
Sabe das minhas dores,
meus amores,
das minhas cicatrizes,
do grito...
longe... longe... longe...
e da tristeza
que a vida arrastou para os meus olhos
A noite sabe como novembro é triste
Como, em novembro,
a gente se aproxima da cegueira
e os olhos não vêem as andorinhas nas tardes,
nem a aurora vertendo em vermelhos e laranjas
a sonolenta manhã
Não vê o coração opresso dormindo dentro do sonho
Não sente a pele eloqüente
Não sente o silêncio navegando as fontes
Não sente a palavra corroendo como ácido
na absoluta iniqüidade do ser
Não sente...
não sente...
não sente...
não sente os rios opressos pelas margens
e o vazio (ul)trajado de esquecimento
e de desprezo
Não sente o frio lago
nem a queda das folhas na água fria do lago
que reflete a neblina bêbada de luz,
reflete o tempo que escorre na vidraça embaçada
e onde rabisco com os dedos os meus medos
que a noite conhece a todos
A noite sussurra poemas que escrevo com a neblina
do ocaso e na luz titubeante do círios acesos
entre as veleidades e as sombras do quarto
Quisera eu encontrar na Vida a sutileza dos sonhos
e dos poemas no prelúdio da amizade
Quisera viver entre homens o que me dizem os Deuses
e respirar os momentos nos quais florescem os lilases
A noite, lentamente, se evola nas madrugadas de agosto,
atônita, leve e fria como a canção dos meus sentimentos
Ouço a voz nos abismos
como o nítido choro cediço da criança sozinha
e assustada na névoa pardacenta
da melancolia a dardejar sua emoção
A noite cochila em meus olhos
úmidos dos últimos versos que li,
estiolando certezas,
dissovendo meus mundos,
como os lampiões que se apagam fenecem
as sombras nas paredes caiadas de um branco recente,
preenchendo as lacunas sujas dos cinzas
e dos alvacentos mistérios que as mãos da criança
tramam nas paredes como o barro primordial
A lua, grande e amarela, serena e inconclusa
amarela a rosa que brotou com as útimas chuvas
Deita sua claridade sobre as clandestinas
luzes que se dissipam pelas frinchas das telhas
por onde entra o vento que faz bruxulear as velas
que imitam os dias voláteis e amarelos
como a chama imprecando os segredos das noites
Em silêncio a noite me interroga e me define
em imagens como num jogo de espelhos
A brisa sopra, traçando arabescos no ar gelado
Há vestigios de tempo no ar
Um passado que ouve o vento
e seus passos lá fora...
...na noite que sabe de mim
como sabe do velho livro que a indiferença escreveu
em irresolutos arabescos
Lá, ao longe, o sino toca na igreja
A noite é um zimbório ermo e vazio
onde somente as estrelas fazem seus ninhos
O sino canta os fragmentos do vento passando
entre os frêmitos da noite
e os tácitos ares da manhã que se aproxima
trazida pela multifoliada realidade
que engana a mim e a ti
pequenos suspiros no mundo,
das noites que nos contém
no tempo que flui através do sonho inaudito
Da janela debruçada sobre a madrugada
espero o amanhã que virá do mar
quebradiço e mudo,
andando os longos caminhos,
pelas cambiantes e inóspitas paragens
onde deixarei,
como o vento sibilando nas areias,
teu nome
que a noite orvalhou com o sereno
forjado na penumbra distraida dos tempos
A noite flui como a canção do rio contrito
e meus olhos fecham-se
                                     [ouvindo-a
como quem ouve a ingenuidade
A noite concebe estrelas em silêncio
Adormeço,
sentindo nas vozes anacoretas
um frêmito que trespassa vida


Imagem: Fernanda Cordeiro

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