segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Anda no mundo a cegueira

Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos como animais envelhecidos;
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos;
como frutos de sombra sem sabor
vamos caindo ao chão apodrecidos
 
Eugénio de Andrade.
In Poesia.
Rosto Editora - Modo de ler, 2011.
 
 
Anda no mundo a cegueira
como labaredas acesas correndo no mato seco
Anda no mundo tanta certeza que chega a alumbrar a luz,
que chega a apeà-lo da cruz
Andam meus olhos tão cegos
Meus olhos encobertos por sofismas já não veem
os silogismos e as premissas que me exilaram de mim
Não tenho tempo nem verve para duplicar ouro qual um Zósimo
Muito pouco posso fazer pela sua dor
Para mim, impenetrável, indefensável, incolor
Fecho meu coração para o mundo e suas mazelas
Ando cego e hipócrita
Arrogante e falacioso
Indiferente e apático
Cuidando do próprio umbigo, e olhe lá
Não me comovem as chagas abertas em tantos Cristos,
de tantas igrejas e capelas,
de tantas ruas e vielas
Tão cego anda o meu coração
Que já não vê o que via o meu coração de menino
Que já não cantarola a música que o vento sugere
Que já não lê o poema
Que já se esqueceu do bairro da infância
Que já não se comove com a amorfa vida das ruas
Que já não se contorce ao ver e saber as guerras
Meu sentimento fez-se insondável madrugada
A transcendência do nada
Este desespero silencioso e afônico
Esta ironia escorrendo dos atos
Menoscabando o pranto alheio por não ser minha a dor
Andam moucos meus ouvidos
Andam sem fé as minhas mãos
Que já não se postam para a oração
E tateiam na escuridão em busca de uma possível absolvição e salvação
Na boca este gosto de mágoa, fogo, cinza e morte
Sinto no ar o cheiro do rastilho vermelho da bomba
Vislumbro no horizonte o seu cogumelo
Onde termina o ser humano e começa a bestialidade?
Minha consciência já não sabe
Meus sentidos já não sentem
Já não me são de grande valia
Estou anestesiado
Durmo o sono insonte e desatento dos justos e éticos
Coisas que não se vê muito por aqui
Ganho meu salário independente da tua fome
Independente se amas ou odeias a tua vida e as coisas da tua vida
Um dia havemos de enxergar quem nos marioneta,
nós, os fantoches, vítimas das injustiças sociais,
com nossos ventres galados e nossos sonhos banais 
Um dia, quem sabe, um dia
Quando Godot chegar
Quando voltar o que ia
Quando a canalha partir
Quando chegar a alegria
Quando vier o amor
Quando viver for fantasia
Quando me afagarem a memória as mulheres que amei
Quando brotarem as flores ao meio-dia
Quando a saudade for tanta
Que esquecer não esquecia
Enquanto a caliça dos sonhos se revelava na réstia de luz
Enquanto meu mundo se desfazia
Quando não mais jogar jogos de poder
E o medo de mim se apiedar
Vou viver minha utopia
Aqui ou em outro lugar


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