sábado, 11 de outubro de 2014

Tenho medo e invento...



há sempre um dia em que não se morre
porque morrer seria redundância
e reduzida à sua essência mais secreta
a vida continua pulsando porque seria
mais difícil estanca-la que continuar
assim, a seco, coração anoitecido
pela sombra e a soma de todos os desencantos,
[sem rumo algum pelo/sem sentido de todas as coisas]*
 
há sempre um dia em que se tem vontade
de expor aos passantes a chaga aberta,
como os mendigos expõem feridas nas calçadas,
chapéu ao lado, para que nos joguem moedas,
olhares de pena, desprezo ou simplesmente nojo
mas tão difícil mostrar as cicatrizes quando a vida
foi ensinando, lenta, o jogo necessário de escondê-las.
 
há sempre um dia em que  nos perguntamos
fui eu quem me fez assim ou me fizeram?
e a resposta importa pouco, importa nada;
seja qual for, não voltará jamais o que perdeste
em alguma esquina do caminho, não sabes onde,
não sabemos como, e mesmo o choro então é pouco para
[tua dor
E ainda que compres rosas ou vás ao cinema ou cantes
uma canção qualquer, o que persiste é a morte
com seu roteiro de vermes e distâncias.
 
no dia seguinte ao dia em que não morremos,
iniciados na tarefa de tecer o inútil
trocamos os lençóis, lavamos o rosto, arrumamos a casa e
partimos para a rua
sem que ninguém perceba o epitáfio sobre a fronte.
 
*No original constam as duas possibilidades
 
Caio Fernando Abreu.
In Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu.
Record, 2012.
 
*************
Tenho medo e... 


invento este silêncio tonitruante,
indecifrável imaginário
Invento horas e dias me manietando à prisão
Invento o escuro da noite
para o sono dos meus olhos cansados
Invento janelas oblongas e vazias
sem floreiras nem beirais,
sem paisagens ao longe
Invento jardins sem flores
Invento flores sem cores,
sem perfume,
a flor cheirando a estrume
Invento a sede de respostas,
por pequenas que sejam,
mas que sejam verdadeiras
Invento a rede
para embalar um poema
Invento a tarde
esconsa pelas sombras
que se deitam pelos cantos
Invento um céu sem estrelas
Invento estrelas sem céu
Invento o vento passando,
derrubando meu chapéu
Invento um mar origami
para os meus barcos de papel
Invento um sol álgido e escuro
Invento a lua pardacenta e fatal
Invento a sombra subindo pelo muro
Para que peses e ponderes
invento o bem e o mal
Invento a pedra sensível
Invento a dor autofágica
e palatável
Invento a culpa,
o grito
Invento um Deus arrivista
Invento o papa anarquista,
meio proteu,
meio artista
Invento o tempo macambúzio
Invento olhos vazados para não ver
Invento a fome e o dente
para mastigar lentamente
os restos que caem das mesas
Invento a dúvida
e desdigo tantas certezas
Invento esta côdea mendiga e mofada
Invento a personagem que vos fala
sem dizer nada
que vos toca,
que vos mente,
tão vil e sinceramente
A personagem indolente,
imarcescível,
demente
Em contra partida
a vida me inventa incognoscível,
maniqueísta,
dual,
entre o claro e o escuro,
sem lastro sem porto seguro,
entre a sombra e a luz,
infame
A vida e suas garras de pus,
A vida rampeira,
indecente,
traz consigo este gosto afogado de mar,
esta razia de opostos
traz o inferno sulfúreo
e sob a névoa a euforia bipolar

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