sábado, 25 de outubro de 2014

Tempo

ESTOU DIZENDO PARA ESTA LAGARTIXA
 
Estou dizendo para esta lagartixa
na parede do meu quarto
que o século vai acabar
mas ela não me olha
nem me entende.
 
Já tentei falar com a formiga
com a aranha
fui ao limoeiro da horta
e ninguém liga.
 
Olho os objetos da sala
minhas coisas no escritório (os óculos)
e no quarto (os sapatos).
 
Todos indiferentes.
 
Não estão em pânico
não devem nada
e não têm planos.
 
O tempo é mesmo
uma doença humana.
 
Affonso Romano de Sant'Anna.
In Vestígios.
Rocco, 2005.
 
 
 
Compungindo, submeto-me aos fragmentos de algo que não existe
Deixo-me negacear por relógios e calendários, 
e me pego crente da mentira repetida muitas vezes
Explico: dentro do sonho que é a vida não se sustenta a existência
do que se convencionou chamar de horas, minutos e segundos
enclausurados em números e nomes fraudulentos
 
O tempo escoa, singularmente,
ao longo da jornada do planeta e sua ingente solidão,
concubinado aos preceitos da natureza
O tempo nasceu sofisma sob o som e as luzes do Big Bang 
e dissipa-se mística e impunemente
 
A elucubração mecânica e racional
de um tempo retalhado e medido
mensura meu desatento sofrimento,
reduz a minha essência à violência
de um tempo urdido, falaz e mordaz,
encarcera as minhas ações,
enrodilha e cerceia a multidão que há em mim,
me cobre de ansiedades,
me exila de mim mesmo,
açodando a minha morte,
e morro,
morro tantas vezes quantos forem os meus sonhos surrupiados
pelo engodo do tempo
Perco-me na falácias das horas
Pego-me perplexo diante do anacronismo
de um passado presente no futuro,
de um futuro caminhando tão igual para o passado
Moinhos de tempo giram sem se preocupar com o tempo,
giram ao vento
e cospem o matraquear dos relógios
e o silêncio inacabado das ambulas ignaras das ampulhetas
Moinhos de tempo contra os quais eu luto e reluto
na minha quixotesca existência,
os olhos em fuga,
pasmo e cronofóbico,
com medo da sombra que vai subindo pelo muro e levando a tarde consigo
 
O tempo despótico e inverossímil me cerca
e avança
testando a minha angústia e solidão
como se alhures houvesse o infrangível passado,
um presente a lapidar,
o inescrutável futuro
O tempo arvora-se senhor do meu coração trespassado pelas luzes da manhã
Luzes que permutam noites em dias
neste planeta de 7 bilhões de discípulos (ou algo parecido com isto), girando, girando,
independente do fim e da fome metafísica do homem,
insolente,
alheio aos calendários e relógios
São quase 7 bilhões de incautos vivenciando o mesmo engano,
com seus segundos inventados,
a roer os dias e as almas
Segundos espevitados,
maquinados,
criados,
mal criados,
numa ilusão delirante, difundida e aceita
sob precária e incognoscível explicação.
 
Na tela branca da tarde
o horizonte se desvela em laranjas,
vermelhos, amarelos, lilases,
o dia deposita seus pincéis,
a ave busca seu ninho,
os passos do dia buscam a noite,
meu medo busca outro ser numa espera atemporal
num acontecimento sem hora ou dia agendados
 
Testemunha do engano vejo
o sol (dia) preceder a noite,
ou é a noite que precede o dia
Quem puder que me responda
 
A noite, amorosamente,
esbate-se e dá continuação ao dia,
que não é dia primeiro, nem é dia 16 ou 30,
nem á março, nem setembro
É dia!!! Apenas dia
Assim como a noite é noite, apenas noite
E se manifestam numa sucessão de momentos
que nada têm a ver com segundos, horas,
com dias num calendário imposto e impostor
 
O tempo é esta convenção espúria,
derrisória invenção (des)humana,
minutos, segundos emergindo do mundo dos conceitos,
com a mesma lógica da mente que um dia pensou a pedra ou a flor
materializando-se em esquizos e torpes senzalas
desta sísifa escravidão
O tempo é esta perversa e mofina loucura embalada em segundos,
minutos e horas
 
A alegoria do tempo contempla o espasmo da lua
e a precisão do sol
num maniqueísmo de luz e sombra
O nascer poderia ser o início do meu dia e o morrer o ocaso deste mesmo dia
Quanto tempo se passou entre um e outro fenômeno?
Não foram dias nem horas
Passou-se uma existência
O deslindar de um segredo
 
O tempo existe?
 
Há o momento de plantar,
o momento de colher,
o momento da chuva ou do estio,
aquele instante do cio,
o momento peremptório da sina,
o momento das pragas e dos males pervagando os mistérios,
infectando e devorando os sentidos
 
Por mais que eu procure não consigo encontrar
a hora exata de amar,
de ser feliz,
de compor uma música,
de fazer e fazer-se poesia,
de visitar um amigo,
o tempo exato pra alegria
para se locupletar e se achar na liberdade,
para viver-se a utopia,
para ver a flor nascer do friável teorema do dia
que se quer esquartejado
 
Há tempos anacrônicos de paz
onde voam colibris e pequeninas flores sem nome,
de todas as cores,
cobrem o chão
e tempos infindáveis de guerras
com seus cogumelos pairando sobre nossas cabeças
Há o tempo meretriz
o qual desfruta de mim e pelo qual sou pago
tendo vendido, assim, os melhores anos da minha vida
em nome da minha usura
 
Mas, o tempo, assim, esquartejado não existe,
não me ilude e não me engana
o tempo hora, minuto, segundo
o tempo, empilhado nos relógios,
asfixiando o mundo
em ano, mês e semana
é, destarte, uma subvertida doença humana
 

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