terça-feira, 5 de maio de 2015

Foge o céu


foge o céu
num vento anônimo que arrasta nuvens
e ainda derruba folhas num final de inverno
as flores de setembro já espiam
pelas frestas entreabertas das estações
os prelúdios da primavera

a noite vem vindo lá do fim da rua
acendendo lampiões
fogo amarelo roubado
a ignescentes deuses
respira-se a fumaça preta
enquanto a luz bruxuleante
estende-se no vazio entre o ar e o ar
antes de morrer
impregnando as paredes com sombras
flutuantes como a leveza da folha
no ar silabado de agosto
criando imagens que se desmancham
ao vento que oscila a leveza imponderável
dos ideogramas de um haicai que se dissipa no ar
antes que o haijin possa deslindar os primeiros significados
cessa a sombra cediça
sem véus que a ocultem
desnuda-se ante o átimo de tempo
que separa o movimento e o som da luz

o inverno desembarca na ilha
traz espelhos, contas coloridas
e berloques
para aliciar os nativos
restos que sobrou do carnaval
despe-se de cortesias
as noites são longas e frias
como um inverno de segunda mão
um inverno fosco
pairando lá adiante onde um dia a infância foi feliz
sopra, do mar para a terra, um vento pálido,
timorato
tremeluzindo a luz dos lampiões,
a chama oscila,
respira devagar e insontemente,
estremece na noite infrangível
e sua pequena morte incruel
adormece a brisa e os devaneios

uma mariposa deixa-se seduzir pela luz
saracoteia em volta da lâmpada
entregando-se à foto prisão
girando,
esvoaçando,
dançando danças ignotas
assediada infrangivelmente
pelo artifício da luz artificial
sem atinar com qualquer outra possibilidade
que não o de rodear o cansaço e a morte
de um foco de luz que lhe falseia a vida
sem sequer notar o frenesi coruscante
e a liberdade negra e estonteante
que esplende lá fora
e a pequena travessia que faria
da artificialidade cativa da luz
ao bulício e inquietação que sustentam a noite
e tudo o mais que da penumbra consta

rabisco a noite
me perco no rumor da escuridão
com passos de tabaréu
esqueço o poema e o tempo que me trouxeram até aqui
alguém me chama pelo nome
não atendo
meu nome não sou eu
de meu tenho somente a alma
há um preclaro descompasso entre o que estou
e o que a minha alma é
o fim da mariposa acossada pelo engano me desconfortou
o pensamento não sabe o que é luz o que é  escuridão
cativeiro, liberdade

vagueio por entre estrelas
super novas
nada velhas
galáxias
se tudo pode ser poesia
crer na luz até morrer,
sem meandros,
sem emendas,
nem dúvidas
é a maneira mais afortunada de se auto poematizar

alguém acende o círio indubitável e perene do sol
o dia nasce derramando cores 
o sol vaza a memória das copas das árvores
pela janela aberta a algaravia do sol me ofusca
tropeço,
caio,
e rolo
pela borda do céu
de testemunha somente
a imanência do pássaro
que entrou na outra poesia

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