sábado, 25 de julho de 2015

A cidade acorda

 
A aurora telúrica banha mansamente os edifícios
com a tessitura branco rosada que traz os dias
A manhã embaraça-se à vida
mistura-se ao burburinho rouco da cidade
dissolve-se, gota a gota,
no orvalho que molha a flor e molha a máquina
A cidade acorda
sem saber ao certo
se estão longe ou se estão perto
os fragmentos do momento esquecido dentro do sonho
A miséria ainda dorme sobre papelões
sob as marquises e o concreto e maciço des(a)tino
atravessado pela indiferença
e o cansaço da solidão sem resposta

A cidade boceja longamente
para as ruas ainda desertas
para os faróis ainda ofuscados pela nudez da luz do dia
As primeiras luzes arrancam à castidade do nada um sol
grafado em inscientes vermelhos,
vertendo lilases e laranjas
incandescendo o horizonte
antes de ser a clara essência do dia

Pássaros trinam
e se lambuzam de sóis e de poeira
O ar se move
e desaparece nas ruas e vielas
As ruas andam os primeiros passos
As horas mordem e mutilam a vida
entulhando os momentos de mentiras

O bulício acorda a cidade
A cidade se apieda
dos sonhos que deixou engaiolados
nos ventos que tangeram a noite sem rumo
expostos à fuligem quebradiça e densa
A cidade espera
que a madrugada se dissolva
num espectro de cores novas e fugidias
absorvendo o crepúsculo
entreaberto sobre ruas, praças, viadutos...
A cidade é linhas
traçadas no espaço derramado nas plagas
A cidade é quase nada
é latente nostalgia
signo enigmático
ruínas adormecidas
brincadeira de faz de conta
A cidade é sombra amassada
é cacos e ruídos soçobrados nas esquinas
A cidade se ilumina
desbordando o dia
A cidade arde
no vapor e gases cuspidos
pela febre convulsa dos escapamentos
A cidade respira
o ar cinzento de aziagos e intangíveis gases
A cidade transpira fadiga
de mansinho
pelas frinchas nas paredes das construções
A cidade rumina
o ruído seco e difuso dos motores
A cidade vomita
gasolina e óleo diesel
A cidade urina
na neblina sem nome que esconde os postes
no que restou da escuridão

O carro que passa buzina
inconcluso
indiscreto
translúcido
dentro da neblina retorcida
e inaudível

Abro a janela apendoada de monotonia
e vem a cidade junto
e assenta um grão de tumulto e sublevada agonia
uma certa incerteza
de ruas por enquanto inconcebivelmente vazias
de calçadas ermas, passivas e abstratas
de caos
de quimeras
onde o vento carrega papéis e pontas de cigarros

A vida recomeçando do outro lado da janela
sutil e à toa
infinita e sem nexo
atemporal e esquecida
incapaz e confusa

A cidade e eu somos um
íntimo reflexo que se esconde
no lado cego do escuro
A cidade e eu somos o "x"
a incógnita soma do nada

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