segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

A vida não dorme


O vento, irrequieto, gira revoluto
Misturado à noite translúcida e singela
Arranhando  as treliças da janela
O som ciciante do vento na janela me pesa nos olhos
Adormeço
Não sou feliz, nem sou triste
Adormeço e a vida, com suas horas inúteis e sua danação, para
Durmo enlaçado à última palavra
Que a mão derrubou na folha, eu já quase adormecido
Durmo enlaçado aos vendavais
E aos redemoinhos espiralados no bulício dos quintais
Que não dormem em tempo algum
O sono preenche o quarto e a mim de escuridão
Nem sonhos nem pesadelos nem mundos outros
Vêm me pegar pela mão
Tudo calado e numeroso escuro
Meus olhos estão cegos de tanta noite
Em cima, embaixo, ao redor de tudo
Escuro, escuro, escuro...
Pra que escuro tão grande para uma vida tão pequena?
Minha alma deitou-se nua e possuiu meu sonhar
A noite amarelada apartou o medo que me repete desde menino
E me esconde durante o dia
O medo enrodilhou-se do outro lado,
Junto aos pecados e à impiedade
Medrando a vida desperta
Repleta de uma realidade imposta e impostora
A vida aflita e miúda, antiga, hipócrita e demagógica
Ainda é cedo para se derramar as lágrimas sem culpa
A madrugada veda os vidros miméticos das janelas
E as suas mixórdias de sombras e sons
A cidade dorme, ressonando o chiado dos carros
E resfolegando o cansaço das ruas
Os homens abastados dormem, subjugados e felizes com seu ouro,
Com seus carros, seus cartões de crédito,
Conta fria no estrangeiro e suas mulheres impolutas
Os homens humildes dormem, subjugados e felizes,
Com seu arroz com farinha, de vez em quando feijão,
Com seu café requentado, seu pão duro e adormecido,
Sua marmita de flandres, dentro, por cima de tudo,
Um ovo estrelado, por baixo e em volta o resto de ontem
As sarjetas dormem, fétidas corredeiras do luxo
Que a cidade venera tornado em lixo
Os cães ladram baladas dolentes para que um outro cão responda
O desconforto agônico não dorme jamais
Na madrugada opalescente lampeja o verde de um vaga-lume
Uma criança chora o choro, que o peito da mãe calará?
A alma palmilha a migração dos pássaros e a giração dos mundos
A aurora espera no escuro
Espera, distraída, o esquizo dia sair da caixa do remédio de tarja preta,
vestido na bula
E assim dizemos com arrogância e douto saberque a vida é como é
É hora do desassossego cavucar e cavucar
Para ver se alguma coisa acontece
Faz anos que nada acontece nesta sesmaria
Só mesmo a sina e o destino para medrar tanta letargia
Sob o olhar triste, remelento e medroso dos moleques dos semáforos
Calma, não vamos desesperar
O vilipêndio está lançado à terra fértil, um dia vai germinar

O cão dormita sob a escada
Travesseiro de si mesmo
Em volta o vulto do vento se acumula e zumbi
O Universo, por estas bandas de cá,
Dormita sem descuidar dos filhos seus
A bilha ao alcance das mãos
O Universo nos olha pelos olhos humanos de Deus
O céu marisca estrelas
O abacateiro, lá no fundo do quintal,
Derrama sombras e sons de folhas e galhos
Num vozerio ininteligível e insistente
As pedras da rua bebem a lua
Um bêbado, sonolento e vacilante
atravessa a noite ziguezagueando desgarrado da chusma
anestesiada e dócil
Tosse e balbucia palavras engroladas para um ouvinte ausente
Adormece na calçada, hotel com milhares de estrelas
Sem mais perguntas nem filosofias, a não ser as que deixou no bar
Enquanto durmo ruminando o sonho cenobita

Que ao raiar do dia a vida rediviva, atada ao sol,
Me entre pela janela e me acorra de tanta dúvida e medo
E não se esqueça da minha dor sem remédio
Do escuro que, seja noite, seja dia, se alastra em minha alma
E sufoca com tanta tristeza e tanto vitupério
E não me faça mais chorar
Só não me faça chorar

Debaixo da escada o cão se coça sem despertar
Talvez sonhe com o osso que a vida há de lhe dar
O gole d'água
E uma sombra inerte pra voltar a descansar
O peso desta vida de cão

A madrugada sonolenta boceja diante do discurso das horas
O incriável, o inominável,
Toda a beleza do mundo flutuam como uma pena no ar
Como o azul sobre o mar
Como o amor que te ama
E que te leva pra passear
E que te leva pra cama
E flerta com os teus lábios
E os desenha com os dedos
Estremece
O beijo pejado, tirado às páginas de um livro
E cartas cheias de amor
E algumas iluminuras, palavras para enfeitar o que vivo te dizendo
O amor, fragmento de Deus, também flutua no ar
E em sonhos se apresenta tirando a roupa aos amantes
Insinuando-se, unindo amados
E sequiosos, molhando de tanta tentação camas a corpos
Deve ser assim
Me embriago
Amo a cruz e o pecado
Ando sobre a areia quente dos medos
Por não vislumbrar outro caminho
Ando ganindo, com os olhos tristes e sozinho

A vida não dorme, dormita
As estrelas põem brincos na noite
A lua perora no céu suspiros prateados e versos meneantes
Cabe ao vento revoluto versejar as pétalas das flores
Depois que o dia raiar
Antes do mar secar
Depois que a felicidade voltar dos campos pendoada de sonhos
Depois que a chuva cair, tamborilando nos telhados
Depois do beijo na nuca
"Eu te amo", digo às mulheres que ficaram em mim
Acordo para o dia amarelo
Num tempo antigo
Anterior aos dinossauros
Anterior à palavra,
Mas, já cheio de espantos e de sentimentos
Chove
A chuva é hoje, é agora
Sinto falta de uma poesia que fosse minha
Queria tanto dizer: "Chove! Amo a chuva e quem chove"
E que isto dissesse tudo
Fosse espelho e provocação

E tudo que era era segundo a sua natureza e seu devir
O mundo, sabático,
Medita,
Sofisma,
Sopita,
Mas, não dorme

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