sábado, 20 de dezembro de 2014

Preciso de um amigo, não de um juiz


Preciso de um amigo, não de um juiz
Preciso de um amigo que me lembre o que de mim esqueci
O que de mim, precipitado, misturei e confundi
O que de mim nunca soube
O meu texto e a minha exegese
Minha cegueira e meus passos desesperados
Minha essência emanada, pouco a pouco, dos instantes de muitas vidas
Dos tantos medos,
cansaços
Das lágrimas que o vento enxugou num afago cálido e terno
Das lágrimas que rolaram pela máscara kabuki da terra seca no meu rosto
Da soberba que recrudesce e me entorpece e me petrifica a alma
Da voragem insaciável do meu ego caótico e inebriado,
flutuando entre a luz e a escuridão dos becos esquizofrênicos e opiáceos
Do meu mundo de faz de conta,
dos meus castelos de areia,
da minha terra do nunca,
do nunca na brincadeira,
das fábulas que me instigaram,
da minha mente que mente,
do meu eu que desmorona e ausculta os solilóquios do medo
Da torrente impetuosa que gira e move e transborda
o escuro e revolto do meu âmago bipolar

A minha mão indecisa, um dia, escreverá os poemas que regressaram comigo
Serei poeta por um dia, que seja
Mesmo sem saber faze-lo (sê-lo)
Alguns lerão os meus versos e dirão: que desespero
Há os que verão no que escrevo leitura para o banheiro,
Haverá os juízes, de dedo em riste, que darão a sentença:
"morto estaria se viesse aqui buscar dinheiro"
Outros, ainda, a maioria, numa indiferença cotidiana e contumaz ,
sacudirão as palavras todas ao lixo do esquecimento
Cada um no seu momento
Cada um no seu lamento
Cada um no seu tormento
Para cada qual sua dor, sua sina e seu linimento

Preciso de um amigo que me ouça,
sem perambular pelas minhas palavras em busca do bem e do mal
Preciso de um amigo não juiz, sem juízo
Um amigo irremediavelmente mortal,
inconsequentemente surreal,
que coma comigo o sal,
um amigo et cetera e tal
Não precisa gostar de poesia,
nem de ver o pôr do sol na praia da Daniela
nem a luz que inventa o dia,
nem questionar qual é a estrela mais bela
mas que tenha estesia,
volúpia e uma alma com pontos de exclamação, reticências,
vírgulas e conectivos, sem o cruel ponto final.
Que tenha linhas e mais linhas,
parágrafos e mais parágrafos repletos de pontos de interrogação
Que seja original na essência
e sobretudo humano,
suscetível ao toque e ao olhar
E mesmo que eu me cale,
que eu nunca mais diga nada,
o meu silêncio seja para ele tão eloquente
como o silêncio que cicia, se alteia e dialoga com a madrugada
Que seja como eu, condenado, à revelia, à existência solitária e sisifista
de buscar verdades e mentiras dentro da impermanência
e da grande ilusão de Mara que nos cega os sentidos
Condenado a vestir e despir a sombra e a persona incognoscível
sem atinar muito bem com a fantasia
e o segredo que nos mantem em pé mesmo que oscilantes
Que não tenha medo do exílio da morte indecifrável que nos espera sob as fases da lua,
sob o sol das manhãs, mergulhada na catarse do sono final,
que em nosso sonho se aconchegasse
e se aninhasse
e em nossos braços adormecesse
E, assim, a vida fizesse-se ausente
E morrer é seguir em frente
Pelos caminhos tocados pela metáfora da noite rediviva,
pelos rios onde o passado, o presente e o futuro se alinham

Escancaro as janelas da minha morada
Ainda há sombras arrevesadas buscando significações
A vida mascarada pelo lusco-fusco, virada do avesso
Onde o fim?
Onde o começo?
A minha vida se esconde
sob as pedras do jardim
Meu amigo há de trazer sóis incandescentes, luas cheias de centelhas,
para iluminar o escuro
do que de mais noite há em mim

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