sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Coisas que pensei, vi, vivi, ouvi e morri

 
LAMENTOS DO TIO AFRÂNIO (2)
 
Tenho tanta saudade
de estar morto, disse Afrânio.
E pediu-me que o levasse para a janela.
 
Para eu saber que anoitece, explicou.
 
Não quero que a morte
tenha saudade de mim.

Mia Couto.
In idades cidades divindades, pag. 58, Editorial Caminho SA, 2013.
 
 
 
 
Nasci para o mundo
 
Tarde demais
 
Vou morrer
 
Nasci como nascem as manhãs
 
Vou morrer como morrem as estrelas
 
Trazido pelas mãos da aurora
 
Autofágico e engolfado  pela ventania
 
Ou pela mão atroz da sina
 
Hei! você, toma este punhal
 
Vai pro fundo da caverna
 
Livra-me de mim
 
Que a minha voz não se cale
 
Que o tempo me seja ameno

Me ensine

Dê a feição de um Todo às várias partes de mim

Me nimbe
 
Reflito sobre a loucura e a sanidade

Se eu chego um pouco mais tarde

uma das duas já tomou conta de mim
 
Do meu jardim
 
Onde brotam flores de papel
 
A chuva que chove nas flores... é de papel serpentina
 
O vento que embala as flores, volátil e leve, de papel também é feito
 
O trinar dos pássaros que me comove, é de papel pautado pra guardar som e arpejo
 
De papel é minha face,
 
Meu tormento, meu destino
 
De papel é o chapéu do menino que corre e sonha dentro de mim
 
Minha menina é de papel crepom e tem negros olhos de cartolina,

minha menina
 
Os crepúsculos dos dias
 
E o sol que me ilumina, de papel também os são
 
De papel minha alegria,
 
Minha poesia
 
O tremor que há algum tempo se esqueceu nas minhas mãos
 
Meu sentimento banal
 
E de papel picotado é o meu discurso
 
De papel carbono a minha personagem
 
en el gran circo del mundo
 
sem lona e sem picadeiro

abarrotado de bilhões tão parecidos comigo
 
A vida escrita, em meio ao rebuliço,
 
é guardada em maços de papel almaço
 
Meu susto rabisco, traço e esboço em papel vergê:
 
Grite agora ou cálice para sempre
 
Calo-me
 
Morro-me, então,
 
desempenhando o papel de saudade
 
figurando no papel de solidão
 
Aqui fora tudo fica tão calmo

a morte é dissolução

Aqui dentro, textos, poemas, poesias,
 
elegias, madrigais,

bilhetes, cartas, rascunhos,
 
os tratados que pensei, mas não escrevi
 
farfalham
 
trescalam
 
as imagens de tudo que eu não vivi.

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