sábado, 27 de dezembro de 2014

Durmo sem corpo e sem alma


"Durmo sem corpo
como um cão
que, em si mesmo,
inventa um travesseiro"
 
Mia Couto.
In Versos do prisioneiro - Última carta do preso ao poeta.
idades cidades divindades. Editorial Caminho SA, 2013.
 
 
 
durmo sem corpo e sem alma
pois já não sei a alma que tenho
minha alma é multi e vária
minha alma quando ama fica à flor da pele
alguém em mim deita e rola contigo na alfombra,
te beija com beijos dissolutos
um outro alguém de mim mesmo é grito e agonia, transido de poesia
e que se apaixonou por você
a enésima pessoa entre bilhões deste planeta
girando a uma velocidade de 1.666 Km/h,
se apaixonou por você qual Eros por Psiquê
que não podia ver a face do marido
sob a condição de assim lhe perder
porém, Psiquê, certo dia,
o coração totalmente tomado pela curiosidade,
viu o rosto do marido
Eros, diante da promessa quebrada,
abandona Psiquê
sozinha e infeliz
Psiquê, depois de penar pela vida, entrega-se à morte
caindo em sono profundo
Eros ao vê-la tão triste e arrependida
implorou a Zeus misericórdia
e, com a concessão de Zeus,
despertou sua amada
e viveram felizes
pra sempre?
não sei
o pra sempre é muito tempo
mesmo na mitologia
o pra sempre não cabe entre dois braços
já um abraço pra sempre
pode me afagar eternamente
sempre que você fizer carinhos em mim
mesmo que ausente
o pra sempre é feito de cheiros no ar
do roçar de pele com pele
do balbucio carinhoso durante o amor
do grito de gozo
o pra sempre começa quando termina o fugaz
o pra sempre é o momento presente,
ali, para sempre tremente
o pra sempre pode ser de repente
mas nunca pode ser sem você
o pra sempre é o tempo que a alma leva para esquecer
o pra sempre é
onde vago entre a lua e o sol
tentando responder o enigma
buscando respostar em vísceras
para o segredo que o demiurgo me deu
 
preciso morrer todo dia
para afastar a tempestade
preciso afastar as nuvens e deixar o céu sempre azul
por que eu moro numa ilha
e quando chove eu fico, literalmente,
cercado de água por todos as lados
inclusive por cima
e eu não quero me afogar antes de 07 de junho de 2016
 
não tenho tribo, seita ou religião
meu corpo é dois
meu corpo é mais
meu corpo é soma após a divisão
 
por favor, não diga nada
não diga nada
 
convivendo com a minha alma,
debaixo do assoalho,
vive a metade que ama
vivem, anjos, potestades,
um anacoreta e as verdades
que a mentira me diz
vivem as mulheres que amo
e seus nomes escritos a giz
 
me entusiasmei a falar do corpo e da alma
e esqueci do cachorro-travesseiro
(figura esta que, diga-se de passagem, achei linda por demais)
às vezes me sinto cachorro-travesseiro
um cachorro que gostaria de escrever, de dentro do seu sono/sonho,
poemas positivos, ternos, amoráveis, otimistas
mas eu sou um cachorro que tem esta tristeza arrivista
tem tanta sombra no meu dia
tem estes mortos das minhas guerras
os esqueletos desta minha terra
pedindo missa e contrição
tem tanto espelho quebrado
e seus sete anos de azar
queria tanto que o "outro" apaixonado
também pudesse falar 
e, mais do que pudesse falar,
pudesse acontecer
lá fora o tempo passando
aqui dentro eu lhes amando
acho que sou um sonhador exilado dos meus próprios sentimentos
 
aqui estou eu de volta com o meu drama, minha elegia
vamos falar do cachorro que foi para isto que abrimos o parágrafo acima
agora é a vez da voz do cachorro
vamos cuidar bem do cachorro
vamos por o cachorro na cama arrumada
vamos ninar o cachorro
e sua canhestra e canina poesia
vamos respeitar sua raça (se é que tem uma)
eu duvido que tenha
se tivesse uma raça bem posta na vida
não seria de si o seu próprio travesseiro
este cachorro, me parece,
é daqueles que dormem em buracos que fez pelo quintal
que come os resto do almoço
que deglute tua morna carícia e o osso
que abana o rabo quando fulana chegar
(até ai morreu o Neves: abanar rabo todo cachorro abana)
queria ver era o rabo abanar o cachorro
isto, sim, é que seria bacana
este cachorro, como eu, em noites de lua cheia,
uiva e late para a lua
acordando o sono da rua
e uiva, uiva, uiva
até o coração se acalmar
depois procura um dos buracos existentes no quintal
enrola-se em travesseiro
não tendo conta em banco
não tendo nenhum dinheiro
não havendo cadelas no cio
que possam tirar-lhe o sono
apascenta-se com o cricrilar dos grilos
e dormita
não dorme
dormita
 
engraçado
mudei de assunto,
falei do cachorro,
mas ficou a sensação
de que  nunca deixei de falar de mim
 
fora da vida dita real e dura
só um anjo me segura,
sem delonga, sem firula
para que eu não saia latindo
e abanando o rabo
mijando em poste
implorando carinho (epa! isto eu já faço. acho que o anjo se distraiu)

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