quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Cenas do cotidiano

 
Chego ao prédio onde moro
na portaria
uma senhora de certa idade
discorre afetada
sobre as mazelas humanas
do homem e seus delírios de poder
a sua insaciável ânsia de ter
fala da necessidade de colaboração
da falta de união
o porteiro parece ouvir
ou seria os ossos da profissão?
o porteiro "ouve" a tudo e a todos

Ao passar cumprimento os dois
o porteiro responde
ela não
talvez que por estar tão encantada
com o próprio discurso
não ouça nem a si mesma
talvez por que o mundo, neste instante,
gire ao seu redor e o cumprimento que eu lhe fiz
tenha se perdido em algum buraco negro
da galáxia que ele representa neste momento
talvez por que estas coisas todas das quais ela fala
só sirvam para os outros
o que é mais comum
e o outro incomoda que é o diabo
é preciso exorcizá-lo com discursos veementes

Parece-me
com base na experiência que o prédio me dita,
que algumas pessoas,
como o passar da idade,
vão se deseducando
ou será que foram sempre assim
e a gente não as conheceu antes?
assim como vão encolhendo fisicamente,
outras física e intelectualmente
as orelhas crescendo
as rugas enrusgando a alma

Pego o caminho da roça
olho minha caixa de correio
nada de correspondência
bato em retirada
o "outro" não quer falar comigo
pelo menos por enquanto
pelo menos por via postal
o que hoje, diga-se de passagem,
não é normal com e-mail, celular,
whatsApp (que diabo vem a ser isto?)
e coisa e tal
o meu "outro" manifesta-se abundantemente
sempre no final do mês
travestido de contas para pagar

Talvez, quase certeza,
na cidade onde nasci,
perdida no sertão nordestino
ainda escrevam-se cartas
e lambam-se selos (aqueles que ainda têm
                               alguma gota de saliva para fazê-lo)
e esperem-se os Correios ansiosamente
antevendo as palavras que virão
no bom e velho e afetuoso papel

Subo pensando nestas coisa todas
tolas
tão corriqueiras e banais
quem não é capaz de responder um bom dia
um boa tarde, um boa noite
agradecer que lhe segurem a porta do elevador
que lhe segurem o portão de saída
tem o que para dizer sobre a soberba humana?

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