sábado, 19 de setembro de 2015

Preciso ser delicado

 
"Preciso ser delicado
Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida"
 
Vinicius de Moraes
   In Nova Antologia Poética. Ed. Cia. das Letras. 2008. Página 31.  
 
 
 
 

Preciso ser delicado
todo o tempo, delicado
preciso ser poeta e água de choro
e o soluço ritmado depois do choro
e o ritmo dos anjos cantando em coro
esperanças
preciso ser o beijo nos olhos que choraram
e choram os dias sem um destino
que os viesse tocar
sós...
tão sós como as velas gemendo sem peso
aos ventos em alto mar

O que eu fui ficou enlaçado
nas estrelas azuis me espiando
ficou no choro e no riso
ficou no instante conciso
na saudade dentro do retrato
ficou no ruído do vento falando
às velas mudas dos barcos
ficou na ausência do ato
ficou no sal solidificado do mar
ficou no chão que pisei
ficou no chão a me pisar

Sombras seculares andam nos becos
atritando as pedras do calçamento
tirando do ventre frio das pedras
faíscas e indizível lamento
incendiando palavras
acendendo fogueiras na memória
arrostando a mansidão dos silêncios
delineando meus sonhos e o meu destino
fazendo dos dias campos semeados
de tanta ventura, de tanto desatino
por onde só se vai e se esvai
no sem caminho das nuvens
e nas distâncias que me perdem
onde cada pedaço meu
sou eu mesmo que despedaço
e me estorço
e me desfaço
e me refaço
entre os espaços e os medos
entre a compreensão e o perdão
entre poemas de uma tristeza longa e exausta
uma tristeza que dorme esquecida na minha mão
entre poemas enlaçados ao passado que nunca passa
condenados a mais de cem anos de solidão
deixando no ar este aroma de cravos e rosas
entre o sim expletivo do infinito
e a eternidade opressora do não
enchendo a vida com o grito infindável
crepitando na escuridão saindo da noite

Vê, amor, que há poemas onde o amor só nasce para sofrer
poemas que as minhas mãos teimam em escrever
inquietas em meio a erva daninha dos jardins abandonados
dos homens e das mulheres desamparados
o coração delicado decepado de forma irremissível
bateando nos lagos impuros
faiscando passados e culpas
no coração onde o amor é verso e dor
em tudo o que o momento deixou de ser ou não foi
nas lágrimas inertes que invento de repente,
sem poesia aparente,
invento simplesmente,
condescendentemente
para chorar tanta tristeza que se deita
e se aninha
e se enrosca aos meus pés
por tudo que fomos
por tudo que és
e arde em febres indizíveis
e sofre
bebendo lentamente o claro argênteo da lua
vagando e tropeçando na rua
e nas miragens que o vento volitivamente traz
de desertos mirabolantes

Invento lágrimas
para me sentir comovido e minimamente humano
em face da melancolia
adaga dessemelhante que se roça em mim
tocando e lanhando o meu corpo
e o mistério que me alucina
ao entardecer das paisagens sem sol
sem a corda vermelha no céu tesa e estendida
sem riachos ou rios seguindo
o caminho das margens inapreensíveis
no mar sem equilíbrio
nas nuvens desmesuradas que passam me/ditando
no meu olhar a olhar
o olhar confrangido do anjo,
triste e profundo
na felicidade que antes de ser
a minha felicidade,
a tua felicidade
a felicidade que se oculta bem fundo
é o sentimento levado pela cabotagem
das estrelas enamoradas e pequeninas
pervagando pela senciência do mundo

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